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domingo, 24 de março de 2013

Jogos do amor capítulo 86 à 90





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- Oi, Pérola - disse Sophia.
Eu me virei. Definitivamente, aquele não era o tipo de surpresa que eu estava desejando.
Ela estava linda. Como é possível alguém estar sempre linda? Por que eu nunca consegui flagrar a Pérola suada, usando uma camiseta velha e furada, uma trança desgrenhada, com sardas e pó roxo por todo o corpo?
- Pérola, e aí? - perguntei, pensando se ela havia notado a falsa alegria da minha voz. - Quanto tempo!
- Faz tempo que você não me liga - replicou. Notei uma mágoa em sua voz. Se era verdadeira ou não, eu não sabia.
- Pegue uma cadeira da varanda – disse a ela.
Enquanto ela se afastava, Sophia me perguntou baixinho:
- Quer que eu saia?
- Não - a resposta saiu num tom furioso. Na verdade, eu estava apavorada. Queria que o sarcasmo da minha irmã mais velha ficasse por perto servindo como uma espécie de escudo.
- Pra que a escrivaninha? - perguntou Pérola, colocando sua cadeira entre eu e Sophia.
- Pro bebê. Vou pintar de amarelo e fazer uns desenhos, depois que descobrirmos se o Camarada é menino ou menina.
- Como você tem se sentido, Sophia? - perguntou Pérola. – Melhor?
- Radiante com a condição feminina - respondeu Sophia.
Pérola concordou seriamente com a cabeça e eu, tentando engolir uma gargalhada, coloquei a mão sobre a boca, deixando meu rosto cheio de poeira de tinta.
- Imagino que tenha andado ocupada ultimamente – falou Pérola delicadamente -, com o bebê chegando e tudo mais.
Comecei a me sentir culpada. Devia ter me esforçado mais para ligar para ela.
- Com certeza, me deixa ocupadíssima – replicou Sophia. - Eu preciso ficar o dia inteiro sentada.
- A gente costumava se falar todos os dias pelo telefone, Lua - continuou Pérola - e se via todos os fins de semana.
- É - balancei a cabeça -, eu acho que as coisas têm sido um pouco diferentes ultimamente - comecei a lixar uma das gavetas.
- Eu acho que você tem saído muito - disse Pérola.
Levantei os olhos para ela.
- Um pouco.
- Quando Arthur e eu decidimos sair com outras pessoas, apesar de continuarmos saindo juntos - ela acrescentou rapidamente -, ele me contou que te chamaria pra sair.
Continuei lixando.
- Eu fiquei... bem... surpresa.
- Por quê? - perguntou Sophia. - Pra mim, isso faz muito sentido.
Pérola olhou Sophia de relance e puxou sua cadeira para perto de mim.
- Antigamente, a gente mal conseguia esperar pra contar sobre os nossos encontros. Como foi ontem? Você se divertiu?
- Ahã. Eu me diverti, sim. E você? Foi divertido com o Dan?
- Foi bom. Ele tem uma namorada, você sabe. Eles namoram há muito tempo.
- Há pelo menos três anos, eu me lembro - eu disse, concentrada em uma das quinas da gaveta.
- Dan é muito legal - continuou Pérola. - Nós combinamos perfeitamente... quando dançamos. Mas é só isso, eu acho.
- Ahã - por um momento desejei ter o Monte Everest inteiro para lixar, assim eu poderia gastar toda a minha energia.
Pérola balançou os ombros e sorriu.
- Mas acho que foi bom. Talvez já seja hora de eu parar de me apaixonar por caras que pertencem a outras garotas.
Sophia virou os olhos para o alto.
- Engraçado, não é? - continuou Pérola. - Vários caras interessantes aparecem na minha vida, completamente solteiros, e eu tenho que me apaixonar justamente por ele.
- Não é só com você que isso acontece - falei.
- O que você quer dizer? - Uma linha de tensão franziu-lhe a testa.
- Bem... bem, você viu aquelas garotas na festa do Steve respondi rapidamente. - Todas estavam malucas por ele.
- Então, eu acho que tenho bastante sorte - ela disse. - O Arthur é meu. Ele é meu, Lua.
Fiquei em silêncio. Uma bola, que talvez fosse um tumor de pó de tinta, se formou em minha garganta.
- Você contou isso pro Arthur? - perguntou Sophia em voz alta. Muito alta, eu pensei.
- Contar o que pro Arthur? - ele repetiu.







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Aparentemente, minha irmã o havia visto contornando a lateral da casa. Ele atravessou o gramado a passos largos. Fiquei atordoada. Por que ele tinha vindo? Por que não me avisou que faria uma visita? E eu estava com uma aparência horrível, especialmente ao lado de Pérola.
- Bem, acho que você ainda não está totalmente pronta, Lua - ele falou.
"Pronta?", pensei.
- Não, depois disso a gente tem de pintar o berço do Camarada.
Ele riu:
- Quero dizer, pronta para mim - ele me fitou seriamente.
- Você esqueceu?
Eu me virei para Sophia, que estava gargalhando atrás do seu livro. Grande ajuda.
- Você esqueceu do nosso encontro?
Dei uma rápida olhada para ele, então abaixei a cabeça e vi os meus braços. Eu parecia ter escapado de um aquário de peixes tropicais.
- Nós íamos ao zoológico - disse Arthur.
O zoológico!
Pérola olhava de lá pra cá entre a gente, sua boca permanecia em uma linha reta. Se ela começasse a tremer, como sempre acontecia antes de começar a chorar, eu não suportaria. Mas, então, Arthur também não suportaria, e se voltaria carinhosamente para ela e a levaria dali, terminando com esse mísero impasse. Ele estava jogando com a sorte, me arriscando muito. Se continuasse jogando dessa maneira, Arthur terminaria com duas garotas histéricas nas mãos.
Eu olhei diretamente nos olhos dele, usando toda a minha coragem.
- Você cometeu um engano - disse firmemente. – Um grande engano.
Ele piscou. A expressão em seu rosto permanecia impassível, mas eu diria que por um momento ele não estava mais tão confiante. Arthur franziu a testa. Eu franzi a minha de volta. Pérola, é lógico, estava ocupada fazendo um beicinho de choro.
- Eu acho que é isso que acontece quando você joga - falei. - Você não consegue se lembrar com quem marcou um encontro, nem quando. A essa hora, o Dan provavelmente está na casa dele se perguntando por que a Pérola ainda não apareceu. Enquanto isso, Arthur, você está na casa errada.
Ninguém, incluindo eu, conseguia acreditar que estivesse realmente falando aquilo. A verdade é que eu não tinha a menor idéia do que o Arthur estava fazendo ali na nossa frente. Ao menos que a mãe da Pérola tenha contado a ele que ela estava aqui em casa e ele quisesse marcar mais alguns pontos. Eu realmente não suportava mais aquele joguinho.
Pérola continuava a ensaiar um início de choro.
"Ah, engole isso!" Era o que eu queria dizer a ela. Você ganhou.
- Querem brownies? - perguntou Sophia.
- Quero - disse Arthur.
Assisti a ele comer três pedaços.
Pérola pegou algumas casquinhas da fôrma, lambendo delicadamente os dedos, depois falou num tom casual:
- Foi um grande jogo o que vocês assistiram.
Olhei espantada para ela. Pérola nunca havia demonstrado qualquer interesse por beisebol.
- Dois dos melhores times da Liga Nacional - ela continuou.
"Americana" - eu a corrigi silenciosamente.
- Que duelo de lançamentos!
"Duelo?" Ela deve ter lido aquela frase no caderno de esportes.
- E aquele lançamento final do Randy Johnson? - ela continuou. - Foi realmente incrível.
Quase soltei uma gargalhada. Mais um pouco e ela estaria dando um tapa nas nossas costas, dizendo: "E os Orioles!".
Pérola continuou fazendo uma série de observações sobre a partida de beisebol que parecia ter saído da boca de algum comentarista esportivo. Era óbvio que ela só estava falando aquilo tudo para que eu e Arthur contássemos sobre o nosso encontro da noite passada. Por isso, ignorei os seus comentários esportivos e continuei lixando a segunda gaveta. Arthur tentou mudar de assunto. Ele provavelmente gostaria de contar para ela as partes românticas do nosso encontro, quando eu não estivesse por perto, exagerando um pouco. Ou talvez ele estivesse muito ocupado enchendo a boca com brownies.
Quando eu já estava exausta daquilo tudo, disse:
- Bem, pessoal, vocês estão perdendo uma ótima tarde.
- Também acho - murmurou Arthur, olhando bastante aborrecido para mim. - Então, Pérola, quer ir no seu carro ou no meu?
- Se a gente está indo pro Zoológico, eu tenho de passar antes em casa pra trocar os sapatos - ela replicou.
- Tudo bem. Eu te sigo.
E eles saíram, mas antes Arthur se virou para mim e lançou um olhar que me atravessou como um raio.
Permaneci olhando para ele o mais firme que pude.
- Eu estava errada sobre você - falei calmamente. – Você sabe exatamente o que está fazendo.
Ele abriu a boca como se fosse falar alguma coisa, então, pegou mais brownie e saiu.







88

Não foi difícil evitar o Arthur na segunda-feira de manhã porque ele já estava me evitando. E, por sorte, era o nosso dia de monitorar o almoço das crianças. Fiquei pensando se ele teria contado alguma coisa para Anna ou se, instintivamente, ela havia resolvido ficar circulando entre nós dois. Pensei que estivéssemos disfarçando bem a tensão, até que Eugene perguntou:


- Você e o Arthur brigaram?
O garoto fez a pergunta da maneira que sempre falava – berrando - e Arthur acabou ouvindo. Ele chegou perto rapidamente.
- A Lua é minha amiga - ele disse. – Só que agora estamos trabalhando. Mas, quando não estamos ocupados, a gente conversa e se diverte muito. A gente tem um monte de coisas em comum.
"Como, por exemplo, a Pérola", pensei.
- Nós fomos ver o jogo dos Orioles neste fim de semana - Arthur contou a ele, colocando a mão nas minhas costas.
- É, foi divertido - falei.
Permanecemos lado a lado, sorrindo para Eugene, como se estivéssemos posando para uma foto de formatura. Então a Pérola apareceu e seguiu diretamente na nossa direção.
- Quem é essa patricinha? - perguntou Eugene, sabendo que eu teria alguma reação a sua pergunta.
- É a minha amiga Pérola - respondi. - E eu não quero que você a chame desse jeito - acrescentei, ainda que, bem no fundo, eu pensasse "isso mesmo, garoto!".
Pelo jeito que Pérola estava vestida, imaginei que estivesse a caminho de sua aula de dança. Mas algo me chamou a atenção: ela usava um collant que eu não conhecia. E sempre íamos juntas ao shopping e eu a via experimentar tudo o que comprava. Isso pode parecer um detalhe pequeno, sem importância, mas mostrava como as coisas entre nós duas haviam mudado.
- Oi, Lua. Oi, Arthur - sua voz se derreteu quando pronunciou o nome dele. Eugene deu uma espiada nela, então olhou para mim.
Ela se grudou ao Arthur, e nós ficamos ali parados por um momento, como os três mosqueteiros. Arthur tirou lentamente a mão das minhas costas.
- Acabei de encontrar o Chay - ela falou ao Arthur. - Ele vai aproveitar o feriado de amanhã para fazer uma reunião na casa dele. Disse que convidou uns amigos e o pessoal do acampamento.
"Pessoal do acampamento... esses eram os meus amigos, não os seus", pensei. "Não fale de Chay e dos outros monitores como se fosse íntima deles!"
- Eu disse a ele que a gente ainda não tinha nada planejado - ela continuou. - Falei que nós dois iríamos.
Nós. Nós dois. Dei as costas para o casal feliz.
April, a menina das fivelinhas, acenou com sua mão melecada de pasta de amendoim:
- Sabe aonde eu vou no dia da Independência?
- Aonde? - perguntei.
- Na parada que vai acontecer aqui perto. Minha tia vai me trazer de ônibus.
- Mesmo?! As tias são o máximo, não são? - eu disse, e decidi que Sophia e eu iríamos a todas as liquidações da cidade e voltaríamos para casa carregadas de coisas para o Camarada.
Ao final do almoço, quando Chay me convidou para a reunião em sua casa, eu já estava com uma desculpa pronta. Ele pareceu terrivelmente desapontado.
- Acho que é melhor não convidar a Sophia, então – disse ele. – Ela provavelmente não vai querer ir sem você.
- Bem, nunca se sabe. - "Sair seria bom para Sophia", eu pensei, "e Chay tomaria conta dela." - Por que você não liga pra ela e pergunta?
- Você não pode perguntar para mim? - ele retrucou. - Diga a ela que é uma república de estudantes, mas que estou sozinho neste verão. E tem um banheiro no primeiro andar, que vai estar bem limpo, e têm também várias cadeiras para sentar, e eu posso arranjar qualquer coisa que ela queira comer.
- Eu falo.
E falei naquela tarde, enquanto ela preparava um molho de macarrão e eu lavava alguns legumes.
- Que horas as pessoas vão chegar lá? - perguntou Sophia.
Fiquei surpresa por ela não ter rejeitado o convite imediatamente.
- Às seis horas. Chay disse que, do quintal dele, a gente consegue ver os fogos de artifício que soltam lá da prefeitura.
Ela mexeu o molho mais algumas vezes e, depois, espiou o reflexo do seu rosto no alumínio da torradeira.
- O que você vai vestir? - perguntou.
- Eu não vou.
- O quê? Por que eu vou se você não vai?
- Para se divertir - eu disse.
- Mas eu não conheço ninguém.
- Você vai encontrar o Chay e o Arthur - lembrei. – E a Pérola.
- Ah - ela disse com uma voz maliciosa. – É por isso que você resolveu ficar em casa. Vai curtir uma fossa.
- Não vou curtir fossa nenhuma.
- E eu não vou se você não for.






           89

Depois disso, liguei pro Chay. Disse-lhe que eu havia desistido da "outra festa" e perguntei o que eu e Sophia poderíamos levar para a reunião.
- Uma sobremesa - respondeu ele. - Brownies. Ou qualquer outra coisa com chocolate. Eu tenho tido desejo de comer chocolate ultimamente.
"Isso está virando uma epidemia", pensei.
No dia seguinte, eu e Sophia aparecemos lá e encontramos um batalhão de pessoas. Eu devia ter imaginado que Chay tinha muitos amigos da faculdade. A casa antiga de madeira, de paredes descascadas, não ficava muito distante do campus. E tinha um quintal grande, com plantas que pareciam ter sido podadas naquele dia, e onde várias cadeiras de alumínio estavam espalhadas para quem quisesse se sentar. E, num dos cantos, havia uma poltrona que Chay separara especialmente para Sophia. Quando ele nos avistou entrando no quintal, seu rosto inteiro brilhou.
Fomos as primeiras pessoas do acampamento a chegar, e ele nos apresentou aos seus amigos. Estava feliz de poder me integrar um pouco, antes que Arthur e Pérola chegassem. Chay apresentou um estudante de antropologia para Sophia e, para mim, arranjou duas meninas que competiam pelo time de basquete de Kirbysmith.
Ele estava sendo o bom e velho Chay, andando entre as pessoas, rindo e balançando os braços. Exatamente como no acampamento: sempre atento, tentando deixar todos o mais à vontade possível.
Anna chegou um pouco mais tarde, abraçada com um cara lindo. Depois Hau apareceu sozinho. Pâmela chegou com duas amigas risonhas. Eu já estava ficando feliz, achando que Arthur e Pérola tinham arranjado algo melhor para fazer, quando eles chegaram, logo depois que a primeira leva de hambúrgueres saiu da grelha.
Anna os avistou primeiro e comentou com o namorado, Chuku. Todos nós os olhamos ao mesmo tempo.
- Bem, é praticamente impossível que Arthur fuja daqui - comentou Sophia. - Pelo menos não do jeito que a Pérola está agarrando ele.
- Talvez seja ele que esteja agarrando ela.
- Eu duvido - disse Anna, levantando o braço cheio de pulseiras e acenando para Arthur.
Os dois se juntaram ao grupo e, durante os primeiros vinte minutos, Arthur conversou e brincou com todos, exceto comigo. Pérola permanecia ao seu lado, atraindo os olhares de diversos amigos do Chay. "Deve ser o máximo pra ele", eu pensei, "vir numa festa com uma garota que é desejada por todos os outros caras.” Então percebi Arthur espiando o meu cabelo, que eu havia penteado para baixo naquele dia. A noite estava úmida e imaginei que, provavelmente, ele deveria estar arrepiado, com aquele visual "elétrico".
Pérola passou a explicar movimentos de balé para Anna, dando uma pequena demonstração. Então Arthur chegou mais perto de Sophia e de mim.
- Quando seu cabelo fica... fica assim... ele não foi passado a ferro, foi? - perguntou Arthur.
- Claro que não - retruquei. - Eu apenas me penteei com um ancinho de jardim!
Um canto de sua boca se levantou, num meio sorriso.
- Como foi o zoológico? - perguntei.
- Legal. Divertido. Pena você não ter ido.
- Sabe, Arthur, às vezes você tem de parar de jogar.
- Jogar o quê?
- Ah, dá um tempo! - falei irritada.
Arthur saiu de perto e, depois disso, procuramos manter distância um do outro. Não olhei mais para ele até a hora dos fogos de artifício.
As pessoas tinham esticado lençóis e cobertores velhos sobre o gramado, mas eu já havia encontrado um lugar nos degraus da escada da varanda. Sophia deixou os outros para se sentar perto de mim.
- E aí, tá se divertindo? - perguntei. Mas pude ver a resposta para minha pergunta no seu rosto corado. Por algumas horas, pelo menos, ela tinha voltado a ser uma aluna de faculdade com 19 anos.
- Tô, bastante. E você?
- Podia ter sido pior - disse, dando de ombros. - Ah, olhe!
Ela virou os olhos pro céu e começamos a soltar "ohhhs" e "ahhs" para cada uma das explosões de cores dos fogos.
- Eu gosto dos verdes.
- Os roxos.
- O azul e o rosa juntos.
- Ah, a gota! O seu favorito, Lua, em formato de gota!
Mas, nesse momento, eu tinha começado a assistir a outros fogos de artifício.
Pérola e Arthur estavam sentados juntos sobre um cobertor. Ela colocou um braço ao redor dos ombros dele e, com a outra mão, virou o seu rosto para o dela. Ele inclinou a cabeça e ficaram se olhando. E permaneceu assim, por um tempo que pareceu uma eternidade. "Ele vai beijar ela", pensei, "ele vai beijar ela no pescoço da mesma maneira que me beijou." E isso tinha sido um conselho meu, é claro.
Mas ele foi na direção da boca. Pude sentir a minha própria boca amolecendo. Eles se beijaram e se beijaram. Eu não conseguia parar de olhar para o ponto em que os lábios deles se encontravam. Aquela pequena e estranha dor estava ficando mais intensa. De repente, tive a sensação de que não conseguia mais respirar.
- Mantenha os olhos no céu - disse Sophia.
- Não consigo.
- Não dê tanta importância pra isso, Lua. Você viu que foi ela que começou.
- E ele está acabando - falei. - Queria estar em casa.
- Logo, quando os fogos terminarem.
Então Sophia fez algo engraçado: como estava sentada no degrau abaixo do meu, ela esticou a mão e tocou a minha canela. Na nossa família, nunca tivemos o hábito de nos tocarmos. E Sophia e eu não nos abraçávamos ou dávamos as mãos desde que éramos crianças. Acho que foi por isso que ela não sabia exatamente o que fazer e resolveu segurar minha canela. Meus olhos começavam a se encher de lágrimas, mas eu quase soltei uma gargalhada.
- Pronto - ela disse -, acho que agora terminou.
"Sim, agora terminou mesmo", pensei. Logo que reacenderam as luzes da casa, nós duas encontramos Chay, agradecemos pela festa e fomos embora.







        90

- Já é hora de acordar? - perguntei algumas horas depois, tateando no escuro e procurando meu relógio. - Está chovendo?


- São quatro horas ainda. Volte a dormir - Sophia falou antes de sair do quarto.
Virei para o outro lado. Mais cinco horas antes que eu precisasse me transformar numa campista feliz. Mais cinco horas antes que eu tivesse que grudar um sorriso no rosto e dizer ao Arthur como eu estava feliz pelas coisas estarem dando certo com a Pérola.
Virei de novo e notei uma luz acesa. Sophia sempre ia ao banheiro no meio da noite no escuro total. Mas havia uma luz acesa agora. E continuou acesa. Por muito tempo.
Pulei da cama.
- Sophia?
Bati na porta do banheiro e, como não ouvi resposta, entrei. Ela estava em pé, enrolada numa toalha, tremendo e olhando para sua camisola na pia. A torneira pingava, pingava, pingava sobre a mancha de sangue.
- Está tudo bem, Sophia - eu disse. - Está tudo bem. Vou pedir ajuda.
A grande janela da sala de espera do hospital dava para o leste. Eu havia assistido ao sol nascer, depois fiquei observando os carros entrarem no estacionamento do hospital; apenas alguns no início, seguidos de uma fila ininterrupta depois das sete horas. Um cheiro de café subiu da lanchonete do primeiro andar, me deixando enjoada. Mesmo assim, às oito horas, desci com meus pais para tentar comer alguma coisa. Sentamos em silêncio, diante da comida.
- Sophia vai ficar bem - minha mãe falou. - Ela é forte. Aprendeu a ser forte com você.
Deixamos a comida de lado e voltamos para o andar onde estávamos. Foi a primeira vez que vi meus pais de mãos dadas.
Às oito e meia meu pai ligou para o Chay e disse que eu não iria trabalhar. Eu não conseguiria falar com ele. Parecia que minha voz estava presa no estômago.
Mais tarde, uma enfermeira apareceu e chamou meus pais. Fiquei olhando mais um pouco através da janela. Comecei a pensar em Sam. Imaginei ele dizendo bom dia para a esposa, sorrindo para ela, e saindo tranqüilamente para dar aulas num curso de verão. Ele não tinha a menor idéia do que Sophia estava passando. O sol estava bem alto agora.
Meu pai retomou e me tocou no braço.
- Lua - disse gentilmente -, Sophia quer ver você.
Eu não me lembro quem foi que me disse, se é que realmente me disseram alguma coisa, mas eu sabia, antes de entrar no quarto, que Sophia havia abortado. Sabia que o Camarada havia partido.
- Sophia?
Ela estava apoiada nos travesseiros com os lençóis puxados até o peito. Seu rosto se virou para a janela. Eu não sabia se andava para o outro lado da cama ou se ficava onde estava, permitindo que ela continuasse sem me ver.
Era muito tarde para dizer que eu pretendia ensinar beisebol ao Camarada. Era muito tarde para dizer que eu seria uma super tia, e que ela não criaria o seu filho sozinha.
- Sinto muito.
Ela não respondeu.
- Sinto muito pelo Camarada... E eu te amo, Sophia, se é que isso ajuda em algo.
Por um momento, ela não se mexeu. Então, pude vê-la fechar os olhos, espremendo-os com força. Ela se virou para mim.
- Engraçado... ajuda em tudo.
Coloquei os meus braços ao redor dela e a segurei. Ou talvez ela tenha me segurado. De qualquer modo, arranjamos força para ficarmos sentadas na cama.
- Sabe - eu disse, alguns minutos depois, me esforçando para falar claramente em meio às lágrimas -, a gente tá ficando muito certinha. Acho melhor uma das duas começar a ter um ataque de nervos.
Ela abriu a boca como se fosse rir, então soluçou contra o meu ombro.
Ao meio-dia, o médico lhe deu alta.
Foi estranho voltar para o nosso quarto. Estranho porque agora só havia nós duas. O Camarada já tinha se tornado uma presença até mesmo para mim. Mal podia imaginar como era isso para Sophia, tendo carregado o bebê por tanto tempo.

Continua.....

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