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domingo, 17 de março de 2013

Jogos do amor capítulos 76 à 80





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- E aí, como vai indo com a Pérola? - perguntei.
- Tava indo bem, mas acho que ela tá começando a perder o interesse - ele sorriu um pouco. - Você sabia que isso iria acontecer. Vá em frente, diga, Lua. Você já havia me falado.
- Escute - eu disse -, você está sendo um zilhão de vezes melhor do que os outros. A Pérola nunca passou dois dias e duas noites com o mesmo cara. Não desista agora.
Ele olhou para mim e por um momento os seus olhos pareciam ter mudado de cor. Pareciam tão tristes, tão desapontados.
- Não fique chateado com isso, Arthur. Eu sei de uma coisa que pode te dar uma ajuda - então, contei a ele sobre a idéia de Pérola de sair com dois caras ao mesmo tempo, ele e Dan.
- Imagino que isso provavelmente tenha te deixado triste, mas se você mantiver a calma, se pegá-la de surpresa... se disser primeiro a ela que você gostaria de sair com outras pessoas, bem, então: Hah! - falei cheia de satisfação.
- Hah... - ele repetiu devagar.
- Você vai conquistar ela! Ela pode até sair com o outro cara, mas não vai conseguir parar de pensar em você.
De repente, pareceu que o sol estava nascendo dentro dos olhos de Arthur.
- É uma boa idéia - ele disse, finalmente. - Que tal sábado à noite?
- Bem, se eu fosse você diria isso para Pérola hoje mesmo. Mas acho que pode esperar até o fim de semana para sair com alguém.
- Mas é disso que eu estou falando - ele disse. - Está livre?
- O quê?
- Você pode sair comigo no sábado? Não se preocupe. Eu explico tudo para o Ovos Mexidos. Ele provavelmente vai achar engraçado.
Mas aquilo não era nem um pouco engraçado. A idéia de passar uma noite inteira com Arthur, ajudando-o a conquistar Pérola, fazia com que eu me sentisse miserável. Levantei do chão, peguei a bola de basquete e comecei a andar em direção à sacola.
- Não sei. Não acho que é uma boa idéia.
- Lua - ele falou, me seguindo -, você sabe que assim que a Pérola descobrir que eu estou com você ela vai ficar incrivelmente enciumada e interessada.
Larguei a bola dentro da sacola.
- Eu te ajudei quando você estava atrás do Ovos Mexidos - ele me lembrou. - É apenas por uma noite, ou duas ou três, o tempo que for necessário. Eu levo você para uns lugares divertidos - Arthur colocou a mão sobre o meu braço. - Você não conseguiria fingir que existe algo entre nós?
Eu sabia que tinha uma dívida para com ele. Atravessei a quadra com dificuldade, arrastando a sacola com as bolas atrás de mim.
- Claro. A gente sempre consegue fingir.







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Sophia pediu que eu colocasse os cartões das crianças na prateleira junto dos ursos de Chay, exatamente como eu esperava. De qualquer modo, ela olhou cada um deles antes e sorriu pelo menos uma ou duas vezes.


Depois do jantar, enquanto ela estava hipnotizada pela Roda da Fortuna, eu transferi os ursos para uma prateleira mais baixa e coloquei os cartões ao redor deles, da maneira mais decorativa que consegui. Também peguei três livros sobre antropologia e cultura africana, enfiando-os no meio da pilha de revistas que ficava ao lado da cama dela.
Pela manhã, deixei Sophia como uma princesa: café da manhã no criado-mudo, um frigobar cheio de suco e comidinhas, um monte de livros e revistas, o controle remoto da TV; papel de carta e canetas coloridas, um walkman, pilhas, o telefone sem fio e uma lista de telefones - tudo ao seu alcance. Nossa vizinha, Mandy, deveria chegar às onze e meia.
Estava atrasada para o trabalho exatamente no dia em que sairíamos para um passeio. Quando eu finalmente entrei no ônibus, as crianças começaram a bater palmas e a gritar o meu nome.
- Eles gostam mesmo de você! - comentou Pamela. Ela estava sentada no primeiro banco, ao lado de Arthur.
Cumprimentei e sorri um pouco.
- Oi, Lua - Arthur sorriu para mim. Eu acho que, assim como as crianças, ele devia estar feliz em ver a garota que podia tornar seus sonhos reais.
- Olá, Arthur - respondi, indo me sentar com a Anna. Hau seguiria o ônibus da escola com o seu próprio carro, de modo que ele pudesse dar uma carona até o campus para os monitores, depois que enviássemos as crianças para casa ao final do dia.
O passeio ao Museu de Arte de Baltimore foi idéia do Chay. Ele achava que as escolas só levavam as crianças para lugares como o Aquário Nacional ou o zoológico, onde as atrações são fascinantes e as crianças normalmente se comportam bem. Portanto, nós devíamos oferecer a eles um pouco de cultura. Obviamente, Chay havia ficado em Kirbysmith, recebendo os sacos de dormir, emprestados por tropas de escoteiros, para a noite do dia seguinte, quando as crianças dormiriam lá na faculdade. Fomos nós que tivemos de informar os guardas do museu sobre os banheiros entupidos, nos desculpar pelos alarmes que dispararam, e dar explicações sobre arte e boa educação toda vez que as crianças apontavam e faziam piadinhas dos nus artísticos.
Mas o dia foi melhor do que o esperado. Depois de um tour com dois guias do museu, que afirmaram gostar de desafios, as crianças brincaram de "Caça ao tesouro". Arthur e Anna haviam elaborado uma lista de pessoas e objetos para serem encontrados nos quadros do museu, e as crianças procuraram avidamente em todas as salas. Então, almoçamos num parque lindo que ficava do outro lado da rua da entrada principal. Depois, deixamos as crianças correrem e gritarem a plenos pulmões por uma hora. Quando já estavam mais calmos, retomamos ao museu para que desenhassem o que os havia inspirado.
Depois que colocamos todas as crianças de volta ao ônibus, com o nosso motorista super confiável, nós cinco partimos para Kirbysmith no carro de Hau. Após percorrermos uns dois quarteirões, eu mal conseguia manter os olhos abertos. Minha cabeça balançou e bateu contra o vidro da janela. "Isso deve ser contagioso", pensei. "A síndrome da 'Bela Adormecida'." Pâmela me perguntou alguma coisa, então eu ouvi Arthur falar baixinho, "Shhh. Ela está dormindo".
Acordei uma hora depois, quando chegamos no campus e pude ver a mensagem deixada para mim na porta do escritório do acampamento.

Lua,
A Sophia ligou. Fui para a sua casa.
Não se preocupe. Já chamei o médico.
Vou ficar com ela até você voltar.
Chay

- Eu te dou uma carona - disse Arthur, lendo o bilhete por cima do meu ombro.
- Obrigada, mas eu estou com o carro esta semana.
- Mesmo assim, pode ser bom ter alguém com você.
Olhei para ele.





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Olhei para ele.
- Quer dizer, se você dirige da mesma maneira que anda de bicicleta - ele acrescentou, tentando transformar sua oferta em uma piada.
- Eu dou conta disso sozinha.
"Talvez eu não desse", eu pensei, assim que cheguei em casa e vi minha irmã dormindo entre os travesseiros, pálida e aparentando ter muito menos que 19 anos. Chay estava esparramado na minha cama, lendo um dos livros de cultura africana. Sorriu, deu uma olhada em Sophia, e então me levou silenciosamente para o andar de baixo.
- O médico disse que está tudo bem que ela poderá ficar de pé em uns dois dias, se repousar - ele me contou.
- Por que ela ligou? Onde está a menina que ia tomar conta dela? - perguntei.
- Não havia ninguém aqui quando eu cheguei- falou Chay, me fazendo sentar no sofá. – Ela ligou para o escritório por volta das onze horas e disse que tinha caído. Estava um pouco assustada.
- Como é que ela caiu? Desmaiou?
- Disse que escorregou em um tapete.
- Um tapete? - Eu pensei por um momento, saltei do sofá e corri para a porta. - Não existem tapetes no segundo andar - falei ao Chay, que tinha me seguido. Apontei para o pequeno tapete no piso de madeira do hall de entrada.
- Ela sabia que não podia descer as escadas! - disse furiosa.
- Sabia que devia ficar lá em cima!
- Você não acha melhor eu ficar um pouco por aqui? - sugeriu Chay. - Estou gostando mesmo desse livro.
Encostei minha cabeça no batente da porta:
- Não se preocupe. Vou ficar mais calma antes que ela acorde. Só não sei o que fazer com ela, Chay. Tô cansada de agir como a irmã mais velha nesta casa!
- Talvez ela esteja cansada de agir como a irmã mais nova - ele arriscou -, mas não sabe como mudar o papel. Talvez seja por isso que esteja fazendo as coisas do jeito dela, ainda que não seja a saída mais inteligente.
- Talvez - eu disse, mas ainda estava me sentindo irritada por me preocupar com ela.
Chay ficou mais uma hora, e nós conversamos sobre as crianças do acampamento. Deixei que ele levasse o livro de Sophia emprestado. Antes de ir embora, me deu o seu número de telefone novamente.
Quando Sophia acordou, eu já estava com o jantar pronto. Ela me contou a mesma história que Chay havia me relatado. Depois, jantamos juntas, em silêncio, assistindo às reprises na TV.
Eu estava me mantendo bem calma. Sabia que não podia deixá-la triste. Cheguei a me lembrar da vez em que jogara um partida de basquete com uma canela machucada sem dizer ao técnico que havia passado a noite anterior numa clínica, onde havia sido diagnosticada uma microfratura. Realmente, teimosia que vira estupidez é algo que corre em nosso sangue.
Então, o telefone tocou. Era Mandy, a vizinha, ligando para agradecer Sophia por ter deixado ela ir ao shopping e querendo saber se gostaríamos que ela viesse no dia seguinte.
- Eu te ligo depois - disse.  
- Quem era? - Sophia perguntou inocentemente.
- Mandy.
- Ah...
- Ela agradeceu por ter sido dispensada hoje. Queria saber se precisamos dela amanhã.
- O que você achar melhor - falou ligeiramente.
- O que eu achar melhor? - repeti. - Eu acho que teria sido melhor se ela tivesse ficado aqui hoje. Mas é claro que você tinha uma opinião diferente.
- Assim que ela chegou aqui, me disse que a mãe dela a havia obrigado a vir.Não achei justo – replicou Sophia. – Ela tinha combinado de encontrar as amigas no shopping.
- Não quero que as pessoas fiquem ocupadas por minha causa, Lua - insistiu Sophia. - O médico assegurou que eu estava bem - disse, ajeitando-se entre os travesseiros. - Não preciso de ajuda. Voltarei ao normal em breve.
- Voltar ao normal? Voltar ao normal? - eu me esforcei para não berrar. - Acho que você ainda não entendeu, Sophia. Nós nunca voltaremos ao normal. Isto é um bebê, este é o Camarada. Não é um daqueles gatos perdidos que você trazia para casa. Não é o passarinho com a asa quebrada.
Ela mordeu os lábios.
- Não é tão simples como alimentá-lo e esperar que, um dia, ele saia voando - continuei. - Você vai precisar de ajuda. E de tempo. Portanto, acostume-se com isso.
Ela pressionava os lábios com força. Era como se eu estivesse olhando para um espelho.
- Não consigo imaginar o que era tão incrivelmente importante pra fazer você descer as escadas - resmunguei.
- O álbum de fotos. Eu queria ver. Eu... eu tava tentando imaginar como o Camarada vai ser. Queria ver nossas fotos, quando éramos bebês.
Os álbuns ficavam no armário do hall de entrada. O mais antigo ficava no alto de uma pilha de livros.
- Você tá querendo me dizer - falei pausadamente – que estava em pé naquela cadeira, aquela que já tá desmontando, sobre aquele tapete escorregadio?
Ela não respondeu.





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Ela não respondeu.
- Não me importaria se ela tivesse combinado de encontrar o papa!
- Sophia! - eu explodi. - Você vai ser uma péssima mãe! Não consegue nem tomar conta de você. Como é que vai tomar conta de uma criança?
- Está se preocupando com o quê, Lua? - ela berrou de volta. - Você nunca quis o meu bebê aqui. Admita! Ficou horrorizada na primeira vez em que falei sobre ele. O Camarada atrapalhou todos os seus planos. E você está louca por causa disso. Agora, deixe a gente em paz.
Fiquei calada. Nós duas estávamos com os olhos vermelhos de raiva.
- Vou ligar pra mamãe.     
- Não, Lua, espere. Não. Por favor, não - ela tentou puxar o papel com a lista de telefones da minha mão. - São apenas mais dois dias.
Mesmo assim, comecei a discar. Eu podia estar confusa sobre diversas coisas, mas de uma coisa eu tinha absoluta certeza: havia perdido toda a minha paciência com Sophia.
Meus pais fizeram reservas para um vôo pela manhã, bem cedo, e chegaram em casa na quinta-feira por volta do meio-dia. Eu joguei o meu saco de dormir e a minha mochila dentro do carro e parti para Kirbysmith. A noitada no acampamento não poderia ter acontecido num momento melhor. Queria poder acampar fora durante todo o final de semana e cancelar o meu "encontro" com Arthur também.
Quando eu cheguei, Chay revisou as estratégias básicas para o dia. As crianças da primeira série iriam embora às 3:15, como sempre. Depois disso, eu teria de coordenar jogos e atividades com os grupos da segunda e da terceira série para deixá-los completamente exaustos.
Amei isso. Fizemos todos os tipos de corrida. Tivemos competições de saltos a distância e corridas num pé só. Perseguimos bolas e balões. Depois que fizemos o nosso piquenique noturno, vários jogos aconteceram simultaneamente: caça ao tesouro, esconde-esconde e dança das cadeiras.
Eu estava correndo de um jogo para outro, quando Arthur me agarrou pelo braço.
- São as crianças que precisam dormir cedo, não você – ele disse.
- Bem, vamos ver qual de nós dois vai dormir primeiro hoje à noite - retruquei.
- Quer apostar?- perguntou.
Eu hesitei.
- Quem cair no sono primeiro, paga o jantar no sábado - ele deu um largo sorriso e estendeu o dedo indicador.
Eu sei, foi um gesto idiota, mas encostar os nossos dedos indicadores teve um efeito tão devastador sobre mim quanto da vez em que Arthur aproximou o rosto do meu dentro do carro. Parecia que um feitiço havia sido lançado, como se o tempo parasse por um instante. Desencostei meu dedo do dele e corri para o próximo jogo.
Quando os jogos tinham finalmente terminado, era a vez de Anna e Arthur começarem a mágica deles. Sentamos em um círculo no bosque da faculdade, perto das árvores e do córrego. Infelizmente não pudemos fazer uma fogueira, mas a noite estava iluminada pelos vagalumes e pela lua quase cheia. Para as crianças que moravam na cidade infestada de néons e luminosos, só a chance de sentar na grama perto das árvores e ver o brilho das estrelas já era algo incrível. Anna contou-lhes histórias e Arthur pegou o violão.
As crianças cantaram com ele algumas canções engraçadas que já haviam aprendido durante a semana. Chay batia palmas e os pés no chão, marcando o ritmo. Enquanto isso, comecei a me lembrar dos ursinhos de pelúcia e do modo como Chay ficara tomando conta de Sophia, enquanto deveria estar resolvendo diversas coisas no acampamento. Se ao menos Sophia tivesse se apaixonado por um cara tão legal quanto ele. Mas o coração é um traidor. É capaz de fazer uma garota trair a sua melhor amiga e um homem trair a sua própria esposa: pode fazer com que você traia até mesmo quem você ama.
Arthur cantou uma balada que as crianças não conheciam, uma canção judaica de amor sobre duas pessoas em lados opostos do mar. Dobrei os meus joelhos e descansei os meus braços sobre eles, deixando minha cabeça cair para a frente. Senti uma pequena mão nas minhas costas. Era April, a menina das presilhas.
Então Arthur partiu para uma música mais animada, depois uma linda canção de ninar. Ela era reconfortante e sua doçura me fez doer por dentro. As crianças sentadas perto dele se aproximaram ainda mais.
Logo já tinha chegado a hora de organizar as crianças em filas para o banheiro e colocá-las nos sacos de dormir. Havíamos agrupado os quarenta sacos de dormir em um grande quadrado na grama, a céu aberto, com uma cerca ao longo de um dos lados. Chay queria que trabalhássemos em times, dois de nós parados em cada uma das laterais. Assim, se um dos dois tivesse de acompanhar uma criança até o banheiro, o outro monitor ficaria no mesmo lugar. Chay resolveu fazer dupla com sua irmã Pâmela, talvez porque ela não fosse totalmente confiável.
- Certo - eu disse -, eu e Hau vamos para o lado oposto.        
- Desculpe, mas Hau já está comigo - disse Anna.
Olhei para ela surpresa.
- Mas Hau e eu trabalhamos bem em dupla.
- É bom trocar de vez em quando - Anna retrucou sorrindo, mas firme.
- Não fique tão preocupada - Arthur falou. - Eu prometo roncar baixinho. E, além do mais, você vai cair no sono bem antes de mim - ele acrescentou, lembrando da aposta.
- Perfeito - disse Chay, batendo palmas. - Bem, pessoal, boa sorte e espero que todos tenham pelo menos meia hora de sono ininterrupto.
Arthur e eu andamos até o nosso lado do quadrado e esticamos os sacos de dormir a uns quatro metros das crianças. Elas ainda conversavam e riam, mas suas vozes já começavam a baixar. Eugene, é claro, continuava a falar bem alto. E Janet falava mais alto ainda, como se estivesse competindo com ele.
Tive a sensação de que perderia a aposta com Arthur, e que todas as quarenta crianças teriam de pular sobre as minhas costas antes que eu ficasse acordada o suficiente para levá-las ao banheiro. Retirar os sapatos e abrir o saco de dormir tinha se transformado num grande esforço. Soltar a trança gastava uma eternidade. Como não escutava nenhum movimento ao meu lado, olhei sobre os ombros para saber o que Arthur estava fazendo. Estava me espreitando soltar o cabelo.
- Alguma coisa de errado? - perguntei.
- Não - ele sorriu e deitou em seu saco de dormir, que estava a uns trinta centímetros do meu.
Desembaracei os cabelos, então deitei de bruços, virando a cabeça para o lado oposto ao dele.
- Se eu não posso ver os seus olhos, como é que vou ter certeza de que ainda está acordada? - perguntou.
- Você ganhou. Eu pago o jantar. Boa noite.
- Lua, você está chateada comigo?
- Eu só estou muito cansada - minha voz tremeu.
- Está bem - disse ele, esticando o braço e dando uma puxadinha no meu saco de dormir, sem me tocar. - Não se preocupe com as crianças. Eu dou conta delas. - Durma bem.







  80

Não me lembro de escutar as crianças ficarem em completo silêncio. Ouvi uns barulhos da noite e os sussurros das crianças, então tudo ficou meio nebuloso, as vozes pareciam vir de uma fita que não girava direito. Rostos, espectros de pessoas que eu conhecia, flutuavam diante de mim. Minha mãe e meu pai, com a roupa com que chegaram da viagem, minha irmã em uma pequena camisola que costumava vestir na escola primária, um bebê enrolado num lençol. Não consegui ver o rosto do bebê.
- Camarada - disse em voz baixa. - Camarada, escute. Tudo vai ficar bem. Você não precisa de um pai. Eu vou te ensinar a lançar e a pegar. Tia Lua estará lá em todos os jogos.
Então, Pérola apareceu ao meu lado. Virou os seus grandes olhos para mim, cheios de lágrimas.
- O que é, Pérola?
O rosto dela desapareceu e eu devo ter caído num sono mais profundo. Mas, algum tempo depois, os rostos voltaram a aparecer. Os olhos de Pérola brilhavam com as lágrimas.
- Eu sinto muito, Lua. Eu sinto muito, mesmo - ela disse.
Olhei em volta para ver onde estávamos. Um lugar cavernoso, com uma cesta de basquete em uma das extremidades e um crucifixo na outra. Todos estavam vestidos de preto. Era um funeral. Minha mãe, meu pai e eu estávamos sentados num banco. Minha mãe, meu pai e eu.
- Sophia? Sophia?
Abaixei os olhos para o caixão. A verdade surgiu lentamente. Sophia e o Camarada estavam lá dentro. Não conseguia respirar. Senti como se alguém tivesse pego uma faca e rasgado o meu corpo ao meio.
Não podia ser verdade. Cada parte de mim dizia que não podia ser verdade. Mas Pérola estava chorando ao meu lado.
- Sophia? Sophia, é você? - gritei. - Não!
- Lua. Lua, quieta. Está tudo bem.
Senti uma mão sobre a minha boca, e outra no meu ombro. Arthur estava curvado sobre mim, me sacudindo para que eu acordasse:
- Está tudo bem.
- Ai, não.
- Foi só um sonho - ele disse.
Meu corpo inteiro tremia. O caixão era tão real. A visão de Sophia dentro dele havia sido mais real do que a sensação de Arthur me sacudindo. Olhei para ele, mas continuei mergulhada nas imagens do sonho.
Arthur me colocou sentada:
- Venha, acorde.
Seus braços enlaçaram meu corpo e me apertaram.
- Você está bem? - ele sussurrou.
Eu balancei a cabeça.
- Está sim. – Seu rosto estava colado ao meu e pude sentir as palavras sendo faladas em minha bochecha.
- Ela... ela não está bem – eu mal podia me mexer. - Sophia não está...
- Sophia está em casa com os seus pais - Arthur falou num tom calmo, mas firme. – Foi um sonho.
Mesmo assim, eu não conseguia parar de tremer.
- Sonhos sempre querem dizer alguma coisa.
- Às vezes - disse Arthur, acariciando o meu rosto -, só querem dizer que estamos com medo.
Afundei o rosto no peito dele e comecei a chorar. Ele me segurou firme. Comecei a soluçar e ele começou a me embalar lentamente.
E se o sonho fosse um aviso? E se eu perdesse Sophia? Eu perderia uma parte enorme de mim, que não poderia ser substituída nunca mais.
- Eu pensei... que ela estava morta - disse. Arthur ainda me segurava com força. Mas os soluços pioravam e meu nariz não parava de escorrer.
- Preciso de um lenço - disse a ele, estendendo a minha mão.
Ainda abraçando o meu corpo, ele alcançou a minha mochila. Talvez soubesse que, se me largasse, eu teria despencado no chão.
- Não sei lidar com ela, Arthur. Quando ela não escuta o médico, eu começo a gritar, dizendo que ela vai ser uma péssima mãe. O tempo todo eu fico falando coisas que a deixam triste. Tenho sido horrível com ela.
- Talvez você não seja uma santa - ele disse. - Mas é uma situação difícil. Nem mesmo Sophia sabe direito como agir. Ela andou cometendo uns erros, não foi? Então, por que você também não pode?
- Porque eu sou a mais forte! - disse rapidamente.
A mão dele tocou a minha boca e eu abaixei a voz, olhando para as crianças. Todos estavam dormindo como gatinhos.
- Sempre fui a mais resistente - falei baixo. - Devo ajudá-la. E não ficar com um monte de pensamentos egoístas.
- Acho que você a ajuda de um jeito que você nem percebe - retrucou. Com uma mão, ele esfregou vagarosamente as minhas costas. - Do pouco que eu vi de Sophia, posso dizer que ela é bem atenta a tudo. Eu acho que ela saiu da faculdade e ficou em casa perto de você porque percebeu que você estava lá pra ela. Muito mais do que você pensa.
- Talvez - disse e enfiei a mão na minha mochila. Só havia três lenços no pacote de plástico. Saí de perto dele e comecei a procurar dentro da bolsa.
- Eu posso rasgar a minha camisa e fazer um torniquete de nariz - sugeriu Arthur.
Eu ri, então ele tirou um pacote de lenços da sua mochila e me deu.
Quando finalmente terminei de assoar o nariz, deitei sobre o meu saco de dormir. Estava com medo de fechar os olhos.
- E se eu voltar a sonhar e te acordar novamente?
- Tudo bem - falou gentilmente.
- E se isso ficar acontecendo a noite toda?
- Aí, quando forem umas quatro horas, eu peço para o Hau trocar comigo - ele sorriu para mim e se deitou.
Fechei os olhos, tentando guardar a imagem dele deitado ao meu lado. Tentando manter aquela sensação de que tudo daria certo para Sophia, para o Camarada e para mim. Ficamos em silêncio por um minuto. Escutei a respiração profunda de Arthur e pensei que ele já estava dormindo. Uma lágrima perdida escorreu pelo meu rosto.
Arthur esticou o braço e segurou minha mão. Apertou-a fortemente. Eu não sei por quanto tempo ele ficou daquele jeito, porque alguns minutos depois eu já estava dormindo.


Continua.....

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