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- Preciso ir.
Eu me levantei, achando que aquilo significava que estávamos indo embora. Mas Josh apontou o caminho do banheiro masculino para Luke.
Quando Luke reapareceu, eu estava parada perto da porta da sala.
- Desculpe, mas eu preciso trabalhar amanhã - disse a ele.
Luke assentiu com um movimento de cabeça e dirigiu-se para as cadeiras onde Hank e Josh ainda estavam sentados. "Bem, estou indo embora sozinha", eu pensei. Então, ele pegou a minha cerveja, acenou para os amigos e saiu comigo da sala.
- Preciso de ar fresco - disse ele, inclinando o corpo sobre mim enquanto íamos para o elevador do alojamento. Andei o mais reto que pude. Era difícil acreditar que Luke Hartly estava tão próximo de mim, tocando o meu corpo, apoiado em mim.
Assim que saímos do prédio, o ar frio da noite pareceu reavivá-lo.
- Você gostaria de andar um pouco, Lua? - falou com aquela voz rouca e profunda.
- Sim - quase sussurrei.
Caminhamos em silêncio por alguns minutos, então comecei a contar-lhe sobre as crianças do acampamento: o endiabrado Eugene; o Tam, que adorava água; e Miguel, o meu atleta. – Ele tem um bocado de talento para uma criança da segunda série, mas precisa de estímulo - disse. - Todos os monitores estão tentando...
- Eu também precisava de muito estímulo quando estava na segunda série - interrompeu Luke. - E ainda preciso.
- Mas o problema do Miguel é maior do que ir bem nos esportes - contei a ele. - A gente acha que ele sofre algum tipo de abuso em casa.
- O meu técnico acha que severidade é estímulo – disse Luke. - Eu nunca tinha sido tão cobrado - ele tomou alguns bons goles da cerveja e voltou a falar sobre o que havia falado a noite inteira: ele.
Atravessamos um caminho que levava até o riacho com a ponte de madeira. Quando chegamos mais perto das árvores, Luke se calou.
- Você gosta desse lugar, não é mesmo? - perguntei baixinho.
- É legal estar com você, Lua - retrucou com um sorriso. - É bom conversar com você.
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Sentamos na beirada da ponte, deixando nossas pernas penduradas, os dedos dos pés tocando a água, os braços e os queixos apoiados na tábua inferior do corrimão. O clarão da lua surgia por entre as árvores e criava reflexos prateados no riacho.
Luke bebeu um pouco mais de cerveja.
- Então, o acampamento é divertido - falou.
- É, mas, de certo modo, é triste também - retruquei. Crianças como Miguel e Eugene nunca haviam entrado numa piscina antes. April acha que o gramado verde do campo de golfe é a coisa mais linda que ela já viu na vida.
Luke escutava tudo silenciosamente. Eu sabia, sabia que se tirasse ele de perto daqueles dois machões tudo ficaria diferente. Contei a ele sobre outras crianças. Ele ouvia tão atentamente que nem se movia.
Então, percebi que estava dormindo.
- Luke. Luke? Luke!
Ele murmurou alguma coisa.
- Acorda, Luke!
Ele levantou a cabeça, sorriu angelicalmente para mim e, então, largou a cabeça sobre o braço, fechando os olhos.
Peguei sua latinha de cerveja. Estava vazia. Percebi que ele estava destruído depois de um dia duro no ginásio, desidratado, e provavelmente falando a verdade quando disse que nunca bebe. Não podia fazer nada além de esperar. Espiei o meu relógio. 9:30. Quando olhei novamente era 9:45, 9:55, 10:05. E se ele passasse a noite inteira dormindo naquela ponte?
- Luke!
- Mmmm - disse, sorrindo.
Não podia largá-lo ali. Imaginava-o escorregando por debaixo do corrimão. Já conseguia ver as manchetes dos jornais no dia seguinte: "Deus grego encontrado morto em córrego. Monitora de acampamento é procurada pela polícia."
- Vamos lá, Luke. Vamos - implorei. – Ovos Mexidos! - gritei em seus ouvidos. Levantei e puxei seus braços para o alto. Seu queixo despencou sobre o corrimão. Puxei, sacudi e arrastei seu corpo. Estava determinada a tirá-lo da ponte. Quando finalmente consegui colocá-lo esparramado na margem do rio, já estava ensopada de suor. Desejando que não houvesse mais ninguém passeando sob o luar perto daquele córrego, virei ele de lado e vasculhei em seus bolsos.
Carteira, moedas, chicletes - sem chaves. Pensei sobre as minhas opções: os seguranças do campus ou o show de Hank e Josh. E Sophia.
Não queria colocar Luke em apuros na faculdade.E Hank e Josh não eram confiáveis. Não havia outra alternativa. Corri para o alojamento mais próximo e dei um telefonema do orelhão no primeiro andar.
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Vinte minutos mais tarde, calçando sandálias de borracha e uma camiseta larga do papai, Sophia apareceu. Cabeça erguida, olhando Luke.
Ele tinha começado a murmurar, o que era um bom sinal; provavelmente conseguiríamos colocá-lo de pé.
- Com certeza, você sabe como pegá-lo - ela falou, balançando a cabeça.
- Bem, você tem de admitir que ele é um gato.
- Devia ter chamado a Pérola - disse Sophia. - Deixe que ela fique com ele agora.
Mordi os lábios.
- Ela ficou te ligando. Deixou duas mensagens na secretária eletrônica. Está muito, muito feliz por você.
- Só me ajude a levá-lo para casa, OK?- disse irritada.
- Tudo bem, Belo Adormecido – ela debochou, levantando um dos braços de Luke. – A grávida está aqui pra ajudar.
Gritando o tempo todo com ele, conseguimos colocá-lo sentado. Ele piscou para nós, como se tivesse estado sob um encantamento por uma centena de anos. Cada uma de nós agarrou um de seus braços e, grunhindo como dois levantadores de peso, nos levantamos. Então os três despencaram no chão.
Sophia acabou andando com o carro sobre o gramado do campus para estacioná-lo mais próximo de nós. Se pegassem a gente ali, as duas filhas da diretora do departamento de inglês, teríamos de encontrar uma nova casa. Mas a segurança estava relaxada naquela noite. Empurramos Luke para o banco de trás e fomos embora.
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Estava tentada a deixar Luke em frente à porta da casa dele, tocar a campainha e sair correndo. Mas, assim que chegamos, ele me olhou adoravelmente, tentando se desculpar. Sua mãe abriu a porta. Os braços dela eram tão longos quanto os dele, e sua voz uma oitava mais grave que a minha. Em situações como essa, eu sabia que a verdade era a melhor saída. Só esperava que no dia seguinte, quando tudo já tivesse passado, Luke continuasse me olhando com aqueles doces olhos verdes cheios de gratidão.
Sophia e eu chegamos em casa bem depois das onze.
- Seu pai e eu já estávamos começando a nos preocupar - minha mãe falou, em frente de uma pilha de relatórios de alunos. - Está tarde para uma segunda-feira à noite.
- Bem, eu pensei que um amigo iria me dar uma carona - expliquei -, mas ele não se sentiu bem. Então, Sophia e eu acabamos levando ele para casa.
Mamãe olhou compreensiva.
- Sabia que podia contar com vocês para que tomassem conta uma da outra - disse e voltou para o trabalho. É isso o que acontece quando seus pais são ex-ativistas hippie que trabalham com educação. Sorte deles que eu e Sophia não tenhamos nos transformado em delinqüentes juvenis.
Subimos as escadas nos arrastando e Sophia foi direto para o banheiro. Enquanto eu me esticava na cama, fiquei hipnotizada pelas luzinhas que piscavam na secretária eletrônica. Se eu fosse esperta, escutaria as mensagens enquanto Sophia estivesse com a torneira da pia aberta. Mas pelo menos duas das cincos luzes que piscavam eram mensagens da Pérola, e eu não suportaria ouvi-la dizer como estava muito, muito feliz por mim.
- Você não vai checar as suas mensagens? – perguntou Sophia ao retomar para o quarto.
- Está tarde - respondi -, muito tarde para retomar a ligação de alguém. Então, por que vou me incomodar com isso agora?
- Mas esses recados parecem uma novela! Pensei que você estivesse curiosa para saber como andam os seus amigos.
Dei de ombros. Tirei o elástico do cabelo e comecei a desfazer a trança.
- Pérola está muito, muito... - ela começou.
- Eu sei - respondi, cortando minha irmã.
- E o Tim quer saber por que ele não recebeu mais notícias da Pérola.
- Bem, adivinha, Tim- disse.
Os dedos de Sophia pairavam sobre a sua prateleira de cremes e vitaminas.
- Na terceira mensagem, Pérola está muito, muito...
- Eu sei!
- ...irritada com os telefonemas insistentes do Tim.
- Bem feito para ela - resmunguei.
- E, é claro, que ela também está muito “você-sabe-o-que” - minha irmã acrescentou, escolhendo um grande pote de creme de abacate. - Enquanto isso, Steve está bem confuso em relação a Pérola. Ele disse que ela fica em cima do muro.
- Boa sorte, Steve - disse, soltando a última volta da trança.
- Depois vem a mensagem de uma certa Jill - continuou Sophia. Quem é esse tal de Arthur?
- Um amigo. Trabalho com ele.
- Ele apareceu em outra mensagem também. A tal da Jill deixou o e-mail dela. - Sophia começou a esfregar o creme de abacate na perna. Toda noite, ela verificava se não havia aparecido novas varizes. - Lua, por que é que, de repente, você virou uma central telefônica de encontros amorosos?
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- Lua, por que é que, de repente, você virou uma central telefônica de encontros amorosos?
- Sei lá. Foi por acaso - falei.
- Lua, nada do que acontece com você é "por acaso". Você está aprontando alguma coisa.
Peguei um grande pente de madeira para desembaraçar o meu cabelo, que estava todo frisado.
- Acho que tem alguma coisa a ver com o Belo Adormecido - disse Sophia. - Quer ouvir a minha teoria?
- Não.
- Você está a fim do Belo Adormecido. Isso é óbvio. E você acha realmente que pode manter Pérola afastada dele - ela disse descrente, balançando a cabeça.
Como não reagi, ela continuou:
- O Tim acha que descartou você, mas foi você que o descartou primeiro, pensando em deixar Pérola ocupada.
- Ninguém descartou ninguém - falei secamente. – Foi uma decisão conjunta.
Ela não deu muita importância para a minha colocação, acenando com o pote de creme.
- Todos esses outros caras... de algum modo, você conseguiu deixá-los numa fila de espera para a Pérola. E, dessa vez - acrescentou com um sorriso sarcástico -, eu não acho que você pretende sair com eles antes de sua amiguinha.
Mordi os lábios de raiva.
- Estou certa?
- Se você acha que sim...
- O que ainda não entendi é como o Arthur e essas outras garotas entram na história - acrescentou Sophia.
- As garotas não entram. Mas Arthur pode ser o cara perfeito.
- Lua, por favor, você não está realmente achando que esse esquema vai dar certo!
- O que eu acho é que a Pérola precisa encontrar o cara certo. E vou ajudá-la nisso.
- Ai, pelo amor de Deus! - Sophia começou a afofar os travesseiros em cima de sua cama. Ela sempre teve alguns; agora ela tem muitos deles, uma coleção de travesseiros para confortá-la à noite. - O cara perfeito será sempre aquele que estiver saindo com você. Já devia ter sacado isso. Não sei por que você largou o Tim. Devia ter largado a Pérola.
- Ela é minha amiga - disse com os dentes cerrados.
- Ela está usando você, Lua! A doce e tímida Pérola está usando você. Chama isso de amizade? Acho isso patético. Ela é muito egoísta. E você acha que bancando a tonta está sendo uma amiga fiel. Bem, eu tenho pena de você.
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- Bancando a tonta? Você também devia se preocupar mais com isso, não é, Sophia? - disse, pegando um de seus travesseiros e jogando-o com força na cama dela. - Eu realmente espero que o Sam goste disso.
Sophia arregalou os olhos. Ela nunca havia contado para ninguém o nome do pai do bebê.
- Da próxima vez, lave a sua própria roupa suja - falei a ela. - Eu vi o nome dele atrás de uma foto na sua gaveta de meias. Ele parece velho.
- Ele é um pouco mais velho - explicou com a voz baixa. - Ele faz mestrado em antropologia. É um professor assistente.
- Um professor? - exclamei. - Você quer dizer que ele deu aula pra você? Ah, não - disse, enojada. - Espero que ele tenha, pelo menos, dado um B pra você. B de bebê!
Sophia puxou o lençol de sua cama e cuidadosamente arrumou os travesseiros. Era sempre assim quando ela não queria lidar com alguma coisa. Começava a se ocupar, se fechando em seu mundinho. Fechava os olhos e desaparecia.
- Sophia - falei, enquanto ainda tinha chance. - O Camarada é filho dele também. Ele deveria estar dando uma força. Ajudando você.
- Ele não pode - disse e apagou a luz ao lado de sua cama.
- Bem - eu falei, convencida, feliz de estar jogando em sua cara tudo o que ela havia acabado de falar para mim -, eu acho isso patético. Sam é muito egoísta.
- Ele é casado.
Por um momento, eu fiquei inerte, pasma.
- Casado?
Minha irmã com um cara mais velho e casado? O que havia acontecido com a aluna exemplar que tinha entrado na faculdade cheia de sonhos, querendo estudar os povos da África? Como foi que ela se transformou em uma mãe solteira, que só fica em casa, no subúrbio de Baltimore?
- E você critica a Pérola por roubar namorados. Mas...você deu em cima de um cara casado!
- Eu não sabia. Não no início - retrucou Sophia, com a voz abafada pelo travesseiro.
- Mas depois você descobriu.
- Era tarde demais - ela disse.- Já estava apaixonada por ele... muito apaixonada - ela levantou a cabeça do travesseiro por um minuto, falando bem francamente.- Ainda estou.
Balancei a cabeça:
- E ele?
- É casado - falou categórica, então, afundou a cabeça na cama.
- É por isso que você está sempre rodeando o telefone, não é? Fica esperando uma ligação dele.
- Ele já ligou duas vezes. Mas não atendi. Fiquei escutando ele falar e depois apaguei as mensagens.
Inspirei profundamente e depois fui soltando o ar devagar.
- Vai tomar o seu banho, Lua - disse Sophia, com uma voz cansada e aborrecida. - Está ficando tarde. Nós duas precisamos dormir. Nós três precisamos dormir - e colocou a mão na barriga.
Desliguei a luminária do meu lado e fui para o banheiro. Uns vinte minutos depois, quando voltei para o quarto, Sophia se virou rapidamente de costas para mim, fechando os olhos como se estivesse dormindo. Mas, graças ao brilho azulado da lua que entrava pela janela, eu já havia visto as suas lágrimas silenciosas.
- Vai, três!
- Miguel, Miguel, não consegue bater nem em papel! - cantou uma vozinha.
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Eu me virei lentamente, com o meu olhar de árbitro mais austero, e dei de cara com uma fila de rostinhos sujos e suados. Tinha chegado para trabalhar na terça-feira de manhã, exausta após uma noite mal-dormida, pensando em Sophia. Não estava com paciência para as brincadeirinhas da segunda série.
- Alguém falou alguma coisa?
Uma fileira de carinhas inocentes me olhou do banco. Miguel, piscando os seus olhos rapidamente, tomou o seu lugar no canto do assento, deixando um bom espaço entre ele e os seus colegas de time.
Tinha de ser cuidadosa com o que iria falar, cuidadosa para não humilhar Miguel mais ainda. Obviamente que a pequena palestra que eu havia dado no dia anterior sobre espírito esportivo e trabalho em equipe não tinha surtido efeito algum.
- Alguém falou e eu quero saber quem foi.
Metade das crianças olhou diretamente para mim, a outra metade olhou para baixo.
- Está bem - disse. - Vamos continuar jogando, mas o time de vocês perdeu dois pontos.
Agora, todas as crianças viraram-se e olharam com raiva a menina que havia cantado, mas eu sabia que ela não era a única que vinha implicando com Miguel. Aquilo vinha acontecendo desde a semana anterior e estava me deixando desconcertada. Miguel parecia querer se enfiar debaixo de uma pedra.
Fiquei feliz quando tivemos de parar o jogo para o almoço. Arthur, Anna e eu estávamos dispensados naquele dia.
- Eu não consigo entender - disse a eles, saltando para me sentar em cima de um murinho de tijolos. Eles tinham arranjado um lugar embaixo dos carvalhos do campus e levado o meu almoço e um refrigerante para mim. - Miguel é o meu grande lançador - continuei, abrindo uma latinha. - Semana passada, ele fez o melhor lançamento que eu vi por aqui. Mais forte e mais preciso do que qualquer outra criança da primeira, segunda ou terceira série já fez. Quer dizer, eu percebi que não faltam oportunidades para elogiá-lo e para deixá-lo mais confiante.
Anna concordava com a cabeça enquanto me escutava. Arthur olhava para mim, mas parecia não estar ouvindo nada do que eu falava.
- Na última quarta, Miguel se atrapalhou todo durante um jogo. E, um pouco depois, se atrapalhou de novo. Aí, uma criança começou a provocar ele, e mais outra, e mais outra. Eu sei que toda turma gosta de eleger um bode expiatório. O que não entendo é por que o Miguel não revida.
- Revidar, agora? - perguntou Anna.
Continua.....

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