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domingo, 16 de dezembro de 2012

A Família Aguiar CAPÍTULO 10







Três dias se passaram, com a primavera deixando o verão cada vez mais perto, com ventos mornos e secos ondulando através das janelas abertas.
Despertando no escuro,Arthur revirou-se e procurou Lua. Esticando o braço mais um pouco, alcançou o travesseiro dela. E descobriu que ela não estava lá.
Em pânico, saltou da cama e agarrou o jeans, piscando e aguçando os olhos para enxergar o relógio na cômoda: quatro e cinco da manhã. A lua ainda estava alta.
Checou o banheiro primeiro, depois o quarto do bebê. A criança dormia, mas Lua não estava escondida em qualquer lugar.
Mesmo sabendo que ela jamais deixaria Miguel para trás, Arthur não conseguia deter o lampejo do medo que repercutia através das suas veias.
Ansioso demais, abriu repentinamente a porta da frente. Lua estava sentada no balanço, um robe de seda cobria seu corpo e a camisola.
— Droga, Lua. Você me assustou. Eu não sabia onde você havia se metido.
— Eu ia acordar você logo — disse ela.
— Por quê?
— Mica ligou.
— Quando?
— O telefone me acordou há mais ou menos uma hora. Ele quer que nós o encontremos. Assim que o sol sair. Na caverna de fumar.
— O que está acontecendo, Lua?
— Não sei. Ele só disse para ter certeza de que ninguém está nos seguindo. E para levar Miguel.

— Naquela trilha? — O caminho estreito para a caverna de fumar, para o lugar secreto onde Mica e Arthur costumavam dividir cigarros, só era acessível a pé. — Como ele espera que nós arrastemos Miguel para cima daquele morro?
— Eu tenho um baby bag que Mica utilizava para carregar Miguel por aí. É como uma mochila. Nós podemos usá-lo.
Arthur franziu a testa, aflito. Até onde aquilo os levaria.
— O que o seu irmão pensa que está fazendo?
— Ele disse que é importante. Realmente importante. Eu acho que tem alguma coisa a ver com o FBI.
Arthur não discutiu mais. Podia ver que Lua tinha a intenção de se encontrar com Mica, de levar o bebê, com ou sem ele. E Arthur não deixaria que ela fosse sozinha, de jeito nenhum.
Os dois tomaram banho e se vestiram, e arrumaram Miguel.
O caminho até as colinas estava sossegado. Arthur prosseguiu pela estrada sinuosa o mais longe que pôde e estacionou num mirante próximo à saliência do rochedo. Lua ajudou a instalar Miguel no transporte de bebê nas costas dele, e seguiram a pé pelo resto do caminho.
Arthur e Lua entraram na caverna e permaneceram próximos à entrada, onde uma pequena quantidade de luz infiltrava para dentro.
Logo uma figura alta e sombria emergiu.
— Mica. — Lua murmurou o nome do irmão e foi ao seu encontro, abraçando-o.
Quando ela recuou, Arthur percebeu as mudanças no outro homem. Seu rosto ferino estava mais magro, e seus longos cabelos escuros tinham sido raspados. Usava um chapéu de cowboy afundado sobre a fronte, a aba quase ocultando seus olhos.

Lua retirou Miguel do baby bag, e assim que o menino viu o pai, começou a esticar os bracinhos para ele, ansioso para fazer contato.
Mica pegou o filho, segurando-o bem apertado.
Arthur sentiu uma pontada de inveja. Depois, uma punhalada de medo. Será que o outro homem pretendia retomar a custódia do garoto?
— Sims e Hoyt estão me esperando no acampamento — afirmou Mica. — Eu não tenho muito tempo.
— Eles estão ajudando você?
— Estão. — Mica beijou Miguel, permitindo que o carinho se prolongasse. — Estão me oferecendo proteção em troca do meu testemunho. Houve um assassinato que Halloway orquestrou, e eu... — Mica hesitou, respirou fundo. — Eu estava lá. Eu sabia que aquilo iria acontecer. — A quadrilha estava me testando — explicou Mica, como se tivesse lido os pensamentos de Arthur. — Eu não falhei, mas também não passei. Naquele tempo, eles não tiveram a certeza se o erro que cometi foi deliberado ou não.
— Que erro? — inquiriu Arthur, encurralando o irmão de Lua com uma cara amarrada.
— Fui incumbido de causar uma distração para que o tiro acertasse no alvo. E foi o que fiz, embora não exatamente do jeito como tinha sido instruído. Eu estava tentando impedir o crime. Mas não funcionou. Não pude evitá-lo.
A respiração de Dulce acelerou.
— Você nunca me contou nada disso.
— Não contei nada a Sophia, tampouco. Não queria que nenhuma de vocês duas soubesse. — Mica ajeitou o filho. — Uma vez incluído no Programa de Proteção à Testemunha, eles vão mudar meu nome, meu rosto e minha história de vida.
Arthur se aproximou dele.
— Você vai levar Miguel com você? É esse o motivo para estarmos aqui?

— Não. — Mica encarou Arthur. — Eu quero ficar com Miguel, criá-lo, vê-lo crescer, mas não posso. Não contei a Sims e Hoyt que Miguel é meu filho. Não quero que ninguém saiba. Nem os federais. Mandar Halloway para a prisão não é o suficiente. Os irmãos de Sophia vão continuar soltos. Eles ainda serão uma ameaça. Miguel ficará melhor com você e com Lua. Miguel é seu filho — disse Mica a Arthur, sua voz rouca de emoção. — Se você deseja realmente ficar com ele.
— Eu desejo. — Arthur não parou de pensar sobre sua resposta. Ela veio rápida, naturalmente. Ele queria Miguel.— Eu cuidarei bem dele. Serei o melhor pai que eu puder.
— Obrigado.
Mica transferiu Miguel para os braços de Arthur que sabia que o velho amigo queria vê-los juntos, para se assegurar de que estava fazendo a coisa certa.
Lua deu um passo atrás e enxugou os olhos, tomando as mãos do irmão.
— Sophia...
— Eu sei. Ela se foi. — Sua voz soou rouca outra vez, seus olhos ainda úmidos. — Sims e Hoyt me contaram. Também disseram que você e Arthur foram vê-la. Que levaram Miguel.
Mica pigarreou, quebrando o silêncio.
— O Programa de Proteção à Testemunha não é tão relevante assim para mim. Mas sei que isso fará com que vocês se sintam melhor. Você não vai precisar se preocupar comigo nunca mais.
— Você vai me procurar de novo algum dia? — indagou ela.
— Não. Esta foi a última vez.
— Tente ser feliz — disse Lua ao irmão, com a voz trêmula. — Tente construir uma vida nova.
— A Máfia se cansará de tentar me alcançar, eu espero. E Sims e Hoyt não são tão ruins assim.
— Hoyt é um bunda-mole — acrescentou Arthur, arrancando uma expressão de escárnio dos lábios rebeldes de Mica.
E então, subitamente, os dois estavam sorrindo um para o outro, como amigos de infância, como os irmãos Cherokee que eles costumavam ser.
Isso era uma despedida, pensou Arthur. O fim.

Mica beijou Miguel e disse ao menino que o amava. Beijou Lua, também. E numa questão de segundos, desapareceu na escuridão da caverna, como se nunca tivesse estado lá.
Uma semana sem nenhum acontecimento notável se passou, e Arthur apreciou o ritmo tranqüilo. Então, era assim a vida de casado?, imaginava ele, enquanto observava Lua ajeitar seu vestido. Era assim o sonho da casinha com cerca de estacas brancas pelo qual outras pessoas se esforçavam tanto para conquistar?
— Você está ótima, Lua.
— Obrigada. — Ela se virou para encará-lo. — Você tem certeza de que ficará bem sozinho?
— Por favor, eu sou o pai de Miguel. — Ele havia se oferecido para cuidar do bebê enquanto ela cuidava da reunião de negócios com a noiva chata. — Você provavelmente terá mais dificuldades do que eu. Eu tenho pena do noivo daquela mala pesada.
— Mala?
— Considerando os nomes pelos quais eu poderia me referir a ela, isso foi uma cortesia.
— Faço idéia. — Lua torceu os lábios. — Bem, para sua informação, o noivo está perfeitamente confortável com o acordo que fizeram. Ele não se incomoda em deixar que ela seja o chefe.
— Porque ele é um panaca.

— Diferente de você?
— É, diferente de mim. — Para provar seu argumento, ele a agarrou pelos ombros e lhe deu um beijo arrebatado.
— Minha nossa. — Piscando os cílios afetadamente, ela abanou o rosto e o fez rir.
— Quer se divertir mais tarde? — perguntou Arthur, subitamente ansioso para que ela se livrasse logo daquela noiva temperamental e voltasse para sua cama.
— Não sei. Pode ser que você esteja completamente exausto. Afinal, você tem um longo dia pela frente... Falando nisso, você ainda não trocou nem uma fralda. Tem certeza de que vai dar conta do recado?
— Eu vou me sair bem. Quem não consegue limpar o traseiro de uma criança e colar uma fralda?
— Colar?
— Com fita adesiva, o que for. Essas coisas descartáveis praticamente se trocam sozinhas.
— É mesmo? — Rindo, Lua ergueu as sobrancelhas. — Você quer dizer que eu tenho me esforçado à toa durante todo esse tempo?
— Muito engraçado. — Arthur foi cutucando Lua pelo corredor. — Simplesmente vá. Tenha sucesso na sua reunião. Convença a Senhorita Pé-no-saco que ela terá a festa de casamento mais grandiosa do Texas.
Lua começou a se irritar.
— Não esqueça de dar o café-da-manhã para Miguel.
— Assim que ele acordar, vou preparar um prato de mingau de aveia.
— Ele gosta de mel no mingau.
— Eu sei. — Arthur acompanhou Lua até o carro. — Ligo para Julianne se eu precisar de alguma coisa. E se ela não estiver em casa, ligo para Maria.
— Está bem. — Dulce deu um suspiro, acomodou sua pasta no assento de passageiros. — Não acostume Miguel com doces. Nada de torta de banana com creme.
Arthur voltou para casa, e Miguel acordou sossegadamente. Arthur tirou o bebê do berço e o deitou sobre o anteparo.

— Até que você não está cheirando tão mal — disse ele ao menino, agradecido pela fralda estar somente molhada.
Carregando Miguel para a cozinha Arthur disse a si mesmo para não se afligir, apesar de a criança parecer angustiada. Um pouco de comida, um pouco de brincadeira e as coisas iriam melhorar.
As coisas não melhoraram. Miguel não queria comer. Sentado na cadeira alta, choramingando e empurrando Arthur, toda vez que ele se aproximava com a colher.
— Eu fiz do jeito que você gosta. Vê? — Provou ele mesmo um bocado de mingau.
Miguel não se impressionou. Esfregou as orelhas e começou a chorar.
— Por que não pulamos o café-da-manhã? — Retirou a criança da cadeira, então percebeu como a pele de Miguel estava quente. — Você está doente? É esse o problema?
Fazendo o diabo para ser um pai responsável, colocou o termômetro, e se pôs a imaginar de que maneira ele deveria manter aquilo debaixo da língua do garoto.
Arthur desistiu e ligou para o consultório médico. Ciente da sua inexperiência, a recepcionista, uma garota com quem estudara no ginásio, lhe disse para colocar o termômetro debaixo do braço do menino e ligar de volta.
Com toda certeza, a criança estava com febre.
Noventa minutos depois, Miguel já estava sentado sobre a mesa de exames do consultório, fazendo uma careta aborrecida para o gentil e velho médico.
— Está tudo bem, Miguel. — Arthur passou a mão pelas costas da criança. — Todas as pessoas da cidade vêm aqui quando estão doentes, incluindo eu mesmo. O Dr. Mills sabe o que está fazendo.
O homem grisalho deu uma risada.
— Você também era um paciente rabugento quando menino. — Apalpando e cutucando, o médico examinou a criança.
— Ele está com uma infecção, não é mesmo?
— Uma infecção branda, mas precisamos cuidar bem dela. — O médico prescreveu um antibiótico, ajustando os óculos que estavam escorregando pelo seu nariz.
— Eu disse à mãe dele que tudo estaria bem hoje.
— E está. O seu filho logo estará se sentindo melhor. — O Dr. Mills olhou atentamente para Arthur por um instante, com um tom mais grave.

— Estou feliz que Dulce tenha voltado. Eu estava preocupado com ela.
— É. Eu também.
— Eu sabia que ela estava grávida, mas não tinha liberdade para divulgar a informação naquela época. Calculei que você fosse o pai, mas logo depois ela desapareceu, fiquei sem saber o que pensar.
— Lua veio ver o senhor? Antes de ir para a Califórnia?
— Certamente que veio. Entreguei a ela o resultado da análise pessoalmente. — O médico afagou a bochecha de Miguel. — E aqui está nossa prova. Um belo garotinho Cherokee.
— Sim. — Arthur levantou Miguel e fingiu um ar despreocupado, embora seu coração estivesse esmurrando seu peito.
Se Lua estava grávida, então onde, Deus do céu, estaria a criança?
Lua chegou em casa e encontrou Arthur caído no sofá, hipnotizado diante da TV, saltando os canais com o controle remoto. Ele se virou para ela, os olhos muito sombrios. Estaria zangado? Deprimido? Cansado?
— Qual é o problema? — perguntou Lua.
— Levei Miguel ao médico hoje.
— Minha Nossa Senhora, por quê? — Impaciente, ela pousou a bolsa sobre a mesinha de centro. — Ele está doente? Ele se machucou?
— Ele tem uma infecção no ouvido. Mas o médico disse que vai sarar logo. Dei o antibiótico e o coloquei para dormir.
— Sinto muito que você tenha passado por isso sozinho. Eu deveria estar aqui. Eu deveria...
— Eu tive uma conversa interessante com o Dr. Mills, Lua. Você não acreditaria no que ele me contou.
Um silêncio profundo tomou conta do ambiente. Lua esperou a bomba cair, o passado explodir bem no seu rosto.

— É verdade? — inquiriu Arthur. — Você estava grávida quando foi embora?
Um calafrio percorreu dela espinha.
— Estava — Lua respondeu. — É verdade.
— O que aconteceu com o bebê?
Lágrimas afloraram nos olhos dela.
— Ele nasceu morto.
— Ele? Nós tivemos um filho?
— Sim. Ele nasceu uma semana depois de Miguel. Nunca me ocorreu que alguma coisa pudesse sair errado. Sophia é quem tinha problemas, quem estava tendo de lidar com uma gravidez complicada. Eu era forte e saudável.
— Então, por que o bebê morreu?
— O cordão umbilical se emaranhou. Ele... — Lua envolveu os braços em torno do corpo, abraçando a si mesma, tentando se consolar de uma dor que não poderia curar. — Mica tentou salvá-lo, mas ele não estava respirando. Meu irmão o enterrou. Mica construiu uma caixa de madeira e a camuflou por prevenção.
Arthur caiu em silêncio, e ela imaginou o que ele estava pensando, o que estava sentindo. Ele a odiava agora? Sentia-se diferente em relação a Miguel?
— Qual era o nome dele? — questionou Arthur. — Qual era o nome do meu filho?

— Nunca cheguei a escolher um. Mica falou que devíamos escolher os nomes das crianças de acordo com o velho costume Cherokee, esperando até que pudéssemos vê-las. Até que vivessem fora do útero. Antes de cada bebê nascer, meu irmão trouxe dois pôneis de pelúcia para casa, um para o filho dele e outro para o meu.
— O brinquedo que Miguel gosta tanto — acrescentou Arthur.
— É. — Lua fechou os olhos, abrindo-os em seguida.
— O que aconteceu com o outro pônei? — Arthur indagou.
— Enterramos o pônei junto com o bebê.
— Onde está o corpo dele? — Mudou de posição para olhar para ela. — Eu quero trazê-lo para casa.
— Você não pode fazer isso. Por Deus, Arthur. Você não pode. Se a quadrilha de Halloway descobre que havia outra criança. Se...
— Maldita seja.
— Eu sinto muito — desculpou-se Lua. — Sinto muito. Isso não deveria ter acabado desse jeito.
— Mas acabou, não é mesmo? Por que você não me contou que estava grávida? — perguntou ele. — Por que você foi para a Califórnia sem me avisar? As pessoas que têm filhos devem se casar.
— Não, Arthur. As pessoas devem se casar porque estão apaixonadas. Eu não queria que você me pedisse em casamento pelo motivo errado.
— E fugir para se encontrar com Micael poderia mudar isso?
— Mica acha que você me ama. Ele manteve essa opinião por anos a fio. E eu queria ouvi-lo dizer isso, para me convencer de que era verdade.
O silêncio se estendeu entre eles. Arthur levantou, as tábuas do assoalho rangiam sob suas botas.
— Pensei sobre isso hoje. Imaginei como seria se eu me casasse com você.
— Você pensou mesmo nisso? — Surpresa, Lua se impulsionou para frente da cadeira. — Por quê?
— Porque nós estamos nos dando tão bem. Porque eu estava me tornando o pai de Miguel. Porque parece certo.
Mas não porque a amava, concluiu ela. E nunca amaria.

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